Como partilhei convosco neste post, o livro Art & Fear foi a leitura com que comecei (e terminei) o mês de Março. Acompanhou-me o mês inteiro, naquele que foi um dos mais difíceis, cansativos e duros meses de trabalho no atelier (tanto física como psicologicamente). Não só devido ao excesso de trabalho, como a outros constrangimentos que acontecem a quem faz cerâmica e tem um micro-negócio sozinha em torno desta prática.
Mas sobrevivi, e a leitura deste livro (um bocadinho todos os dias ao final da noite antes de adormecer de exaustão em frente ao computador - tenho o livro em formato digital) foram os meus poucos e raros momentos de relaxamento e descontração.
Identifiquei-me com imensas coisas, revi-me em muitas páginas e consegui compreender-me melhor enquanto criativa e artista (palavra demasiado forte para me descrever, mas que agora face ao contexto do livro vou utilizar).
E porque o que é bom é para ser partilhado, decidi escrever este post porque realmente gostei do livro e sinto que alguns dos seus conteúdos também poderão ser úteis a outros.
Para mim e para vocês que me estão a ler e que criam, sonham e muitas vezes sofrem com (e durante) as vossas criações, este livro ajuda não só a compreender a ligação profunda, universal e visceral que existe entre arte e medo, como também muitos dos aspetos mais complexos inerentes a qualquer tipo de prática criativa e artística.
No fundo, a leitura deste livro fez-me sentir um pouco menos louca e mais normal. Porque fazer arte (no sentido lato do termo) nem sempre tem sido uma tarefa fácil para mim. Tem tido vários momentos frustrantes e outros por vezes dolorosos. Quase como estar numa relação amorosa um pouco solitária e por vezes ligeiramente ingrata, mas ao mesmo tempo única e maravilhosa. No entanto, ao ler este livro apercebi-me (com inegável alegria) que sentimentos que achava tão únicos e pessoais são afinal comuns e universais.
Porque tornarmo-nos artistas consiste essencialmente em aprender a aceitarmo-nos a nós próprios (o que torna o nosso trabalho pessoal) e aprender a seguir a nossa voz interior (o que torna o nosso trabalho único e diferente de todos os outros).
Fazer arte é difícil (não conheço nenhum artista que diga o contrário) e torna-se ainda mais complexo por não ser uma prática particularmente encorajada (especialmente no nosso país).
Fazer arte, como já tinha escrito aqui, é ter que conviver diariamente com o medo, as dúvidas, as incertezas e as contradições. É fazer algo que não é essencial, que as pessoas não precisam e que a maior parte não admira (ou não compreende).
E por isso, para fazer o trabalho que queremos fazer, precisamos de encontrar o alimento e a recompensa no trabalho em si e não em qualquer outra forma de reconhecimento ou validação exterior.
Para os que vêm de fora, o importante é o trabalho final, a peça acabada. Para o criador (e apenas para ele) é geralmente mais importante o processo e a experiência do que o resultado em si.
Porque no fundo, o nosso trabalho é aprendermos a fazer a nossa arte. E a maioria leva anos a aperfeiçoar as técnicas e a tornar-se bom naquilo que quer fazer.
Neste sentido, a função da maior parte das coisas que criamos é simplesmente ensinarem-nos a fazer aquelas que são verdadeiramente boas e importantes. E por isso, com o passar do tempo, acabamos por aprender que mesmo as peças falhadas foram essenciais. Só elas nos permitiram chegar às outras que ansiosamente procurávamos.
You make good work by (among other things) making lots of work that isn't very good, and gradually eliminating the parts that aren't good.
Para nós que neste momento fazemos arte pode ser interessante relembrar (sem qualquer tipo de crítica ou julgamento) que o destino da grande maioria daqueles que nos precederam foi desistir. O que não deixa de ser triste (e talvez desnecessário).
Pois a verdade é que os artistas que continuam e os que ficam pelo caminho partilham o mesmo território emocional. Todos estão sujeitos aos problemas e desafios diários da vida quotidiana que, eventualmente, podem ser fatais para o processo de produção criativa.
Mas para sobreviver como artista, é preciso (entre várias outras coisas) aprender a enfrentar esses problemas. Basicamente, quem continua a fazer arte é quem aprendeu a continuar ou, mais precisamente, quem aprendeu a não desistir.
Quitting is fundamentally different from stopping. The latter happens all the time. Quitting happens once. Quitting means not starting again, and art is all about starting again.
O medo está sempre lá. É inevitável, é incontornável, faz parte da natureza da criação. Surge não só quando olhamos para o passado mas também quando olhamos para o futuro. No entanto, a grande maioria dos medos está mais relacionada com questões internas do próprio artista do que com a arte em si que ele é capaz de produzir.
Os medos relacionados com a produção artística podem dividir-se em duas grandes famílias: os medos acerca das nossas capacidades criativas, e os medos relacionados com a reação dos outros ao nosso trabalho.
De uma maneira geral, os primeiros impede-nos de fazer o nosso melhor trabalho. Os segundos paralisam-nos e impedem-nos de fazer qualquer trabalho que seja.
Os medos podem tomar muitas formas e ser vividos de muitas maneiras, mas uma coisa é certa: geralmente tornam-se mais fortes quando produzimos trabalho novo e pisamos território desconhecido. Temos receio que falhe, que não seja tão bom como o anterior, que não seja tão bem aceite ou, pior, ignorado.
E cada etapa do processo de criação coloca esse problema à prova. E a má notícia, é que (pelo que tenho lido e também experienciado) não melhora muito com o passar o tempo (é uma coisa com a qual vamos aprendendo a conviver).
What separates artists from ex-artists is that those who challenge their fears, continue. Those who don't, quit.
Construir uma peça é um processo de possibilidades decrescentes e finalmente, num determinado momento, a mesma fica terminada e não poderia ser outra senão aquela que criámos. E esse momento de conclusão é, inevitavelmente, um momento de perda - a perda de todas as outras formas que a peça imaginada poderia ter assumido.
E se uma peça terminada é sempre um teste de correspondência entre execução e imaginação, a ironia é que as peças que conseguimos materializar são muitas vezes menos interessantes no mundo real do que na nossa imaginação (onde tudo é sempre melhor e mais entusiasmante).
No que diz respeito ao trabalho criativo, tudo o que fizermos será sempre temperado pela incerteza. Incerteza sobre o que vamos criar, incerteza sobre o que vamos dizer, incerteza se os materiais são os corretos, se as palavras são as certas, se as formas são as melhores.
Fazer arte é como começar uma frase antes de sabermos o seu final. Os riscos são óbvios: podemos nunca chegar ao fim da frase ou, chegando lá, podemos descobrir que na verdade não dissemos nada.
Por isso é necessário uma disposição primordial para abraçar erros e surpresas ao longo do caminho, porque fazer arte é arriscado e não se conjuga bem com previsibilidade.
A incerteza será sempre a companheira omnipresente, essencial e inevitável nas nossas viagens criativas.
E a tolerância à incerteza torna-se o pré-requisito para o sucesso.
Já Platão dizia que o talento é mais uma dádiva recebida do que propriamente algo criado pelo próprio artista. E por isso pode ser uma armadilha e uma ilusão.
Mais tarde ou mais cedo, inevitavelmente, chegamos a um ponto em que o trabalho não flui sempre de uma forma fácil, por mais talentosos que sejamos.
No entanto, por definição, tudo o que temos é exatamente o que precisamos para produzir o nosso melhor trabalho. Preocuparmo-nos demasiado com o talento que possamos ou não possuir é um desperdício de tempo e energia.
O talento pode ajudar o talentoso a sair mais facilmente dos seus bloqueios criativos, mas sem um sentido de direção ou uma meta pela qual se empenhar, não valerá de muito. O mundo está cheio de pessoas que receberam grandes talentos (por vezes alguns visivelmente chamativos) mas que nunca fizeram nada com eles de uma forma contínua e duradoura (mas como sabemos, é mais fácil fazer trabalho esporádico do que criar de forma consistente e persistente).
Os artistas vão melhorando e aprimorando as suas qualidades dedicando-se continuamente (dia após dia, ano após ano) ao seu próprio trabalho. E por isso, a longo prazo, o talento raramente se distingue de perseverança e trabalho árduo.
Mas certamente toda esta aventura de fazer arte tem as suas recompensas. Uma delas é a de sentirmos que desta forma podemos viver uma vida mais rica, com mais sentido e propósito.
A segunda (e mais surpreendente e fascinante) é quando as pessoas encontram tempo para visitar o mundo que criámos. E algumas até poderão, de facto, comprar um pedaço do nosso mundo e adicioná-lo ao seu, pois cada peça de arte amplia e expande a realidade.
E nesses momentos, percebemos que tudo valeu a pena.
(to be continued...)
Ao ler o seu texto lembrei-me dos meus amigos músicos. Há muitos anos que acompanho musica que se faz por cá mas o lado mais alternativo. Anos oitenta, O Rock Rendez Vouz, a imensa criatividade daquela gente, o DYI, a persistência e o acreditar no que faziam. Alguns ainda andam por aí... há cerca de dois anos atrás um amigo meu após um excelente concerto da sua banda veio-me perguntar se eu tinha gostado, respondi que tinha sido excelente, parece que ainda estou a ver a imensa alegria que a minha resposta provocou, não me esqueço daquele brilho nos olhos...
ResponderEliminarOlá João,
EliminarObrigada pelo seu comentário e partilha. Conheço bem esse brilho nos olhos😊