Estes difíceis amores // uma reflexão sobre amor e desejo

There is nothing genuinely more artistic than to love people.
Van Gogh

Planta - Coração disponível na Generosa

Nada nas nossas vidas causa tanta ansiedade como ser feliz na vida amorosa. Como diz Esther Perel (de quem falei um pouco neste post), a qualidade das nossas relações determina a qualidade das nossas vidas, pelo que viver um amor feliz e duradouro é talvez um dos nossos desejos mais profundos. No entanto, nesta era de prazer e de procura de satisfação pessoal em que vivemos, parece uma aspiração cada vez mais difícil de se concretizar. As relações são difíceis, estamos cada vez mais avessos a ultrapassar dificuldades, queremos o prazer imediato e fácil, e tudo aquilo que nos dê demasiadas chatices ou que nos obrigue a questionar, mudar e repensar coisas difíceis na vida, é completamente banido e evitado.  E vemos assim as taxas de divórcio a disparar (cerca de 45% nos primeiros casamentos e 65% nos segundos).

Esther Perel, autora de um dos TED Talks mais interessantes sobre a temática dos relacionamentos e da infidelidade, é na minha opinião uma das pessoas mais brilhantes atualmente a trabalhar nesta área. Terapeuta de casais há mais de 30 anos, é uma verdadeira fonte de conhecimento, inspiração e sabedoria para quem quiser tentar compreender um pouco melhor a dinâmica das relações actuais.


"Couple Embrassing", desenho de Ergon Schiele (1920)

Como ela diz, antes casávamos e começávamos a fazer sexo pela primeira vez, hoje casamo-nos e deixamos de fazer sexo com outras pessoas. Antes divorciávamo-nos porque éramos infelizes, hoje divorciamo-nos porque queremos ser mais felizes. Antes a felicidade a dois era uma possibilidade, hoje é um mandato. Antes a sexualidade era uma economia reprodutiva, hoje é uma fonte de prazer e de ligação ao outro.

A relação a dois foi aquela que mais alterações sofreu nos últimos anos. Com a mudança radical do papel da mulher na sociedade, começámos a esperar mais do amor e da relação a dois. Já não estamos juntos apenas para ajudar a cultivar os campos ou ordenhar as vacas, já não estamos juntos porque a mulher está dependente financeiramente do homem, estamos juntos por livre escolha e porque queremos estabelecer uma relação mais íntima com outra pessoa que nos proporcione uma experiência transcendente que nos permita voar para lá da nossa existência banal.


Imagem Pinterest

Intimidade tornou-se a palavra chave. Mais do que proximidade física, intimidade é saber que o outro olha verdadeiramente para nós e se preocupa connosco. Que é alguém em quem podemos confiar e com quem podemos partilhar os nossos medos mais profundos, ansiedades e sonhos. É alguém que está lá por nós e para nós (e nós por ele) e que na verdade nos ajuda a suportar a nossa solidão existencial.

No entanto, na procura dessa intimidade muitas vezes parece perder-se qualquer de fundamental no casal. Se por um lado procuramos a segurança, a previsibilidade, o conforto e aconchego que a manta do amor nos proporciona, ao mesmo tempo queixamo-nos da rotina, de falta de novidade e de tédio conjugal. Temos saudades da espontaneidade e da novidade. O outro já não nos proporciona o excitamento do início. Queremos paixão, intensidade, queremos voltar a sentirmo-nos vivos. Em suma, debatemo-nos e temos uma enorme dificuldade em encontrar um equilíbrio entre amor e desejo. Como diz Esther Perel: how can we desire something that we already have?



E por isso é que em muitas relações em que existe um profundo amor parece haver uma crise no desejo. Tem-se menos sexo e deseja-se menos o outro. Começamos a olhar para outras pessoas, a desejar outros, a procurar novidade (não só quando falta amor na nossa relação mas também quando ainda se ama o parceiro/a, de outra forma não haveria explicação, como diz Esther, para o facto de pessoas felizes nas suas relações também serem infiéis). Como conciliar e manter uma relação ao longo do tempo torna-se então a grande questão e o grande desafio.

A rotina é o fim da paixão e o início do amor. Zack Magiezi

Se amar é minimizar a distância, é aproximar e é ter, desejar por sua vez é querer, é não ter.  Não ter, é aquilo que nos faz desejar alguém ou alguma coisa. É a distância (nem que seja psicológica) que potencia o desejo. É ter que atravessar uma ponte e conhecer algo ou alguém novo do outro lado. É a excitação do desconhecido, daquilo que ainda não nos é demasiado familiar. 

Como conciliar então dentro de nós e da relação estas duas necessidades tão fundamentalmente opostas? Como conciliar a nossa necessidade de ligação e a nossa necessidade de autonomia?  O nosso desejo de liberdade e o nosso desejo de segurança? A nossa necessidade de amar e a nossa necessidade de desejar? Como faremos para introduzir uma certa de dose de incerteza nas nossas relações? Como gerar um subtil desequilíbrio para manter as coisas equilibradas?

Não havendo receitas universais, Esther indica alguns caminhos e possibilidades que pelo seu interesse merecem hoje esta partilha.

Eternal Springtime, escultura de Rodin, 1884

Primeiro há que reconhecer o mistério no outro e ter a consciência de que por mais que procuremos precaver-nos há sempre um risco de perda. Introduzir incerteza numa relação nada mais é que abandonar a ilusão de que o outro nos pertence e que sabemos tudo sobre ele/ela. Quando nos agarramos à familiaridade, instauramos o tédio.  A clausura mata o desejo.


Qual o segredo para uma relação duradoura? A infidelidade. Não o ato em si, mas a ameaça do ato. Para Proust, uma injeção de ciúme é a única coisa capaz de salvar uma relação arruinada pelo hábito. Alain de Botton 

Procuramos a intimidade para nos protegermos da solidão, no entanto para criar a distância essencial ao erotismo temos que prescindir do conforto do nosso companheiro e aceitar sentirmo-nos um pouco mais sós.  Há que aprender a tolerar alguma distância e a insegurança fundamental que ela engendra para manter firme o interesse e desejo numa relação.

Se a ideia de afastamento do outro nos perturba, pensemos então em alimentar um sentido de individualidade  Como diz Esther, toda a gente deveria cultivar um jardim secreto.  Desenvolver uma intimidade pessoal em contrapeso ao casal. Afastar um pouco o outro e aproximarmo-nos mais de nós. Na natureza, tal como nas relações, o fogo precisa de ar.

O que implica por vezes não se partilhar tudo. Achamos que para uma boa intimidade temos que contar tudo ao outro. No entanto, Esther defende que um excesso de auto-revelação pode deixar-nos às portas da intimidade - e do lado de fora.  Nem sempre contar tudo a nosso respeito promove a intimidade que queremos. Se as palavras servem de comunicação também podem erguer obstáculos insuperáveis. Se nada resta para esconder, nada resta para procurar.

Devemos também aprender a não fazer do nosso parceiro a nossa única fonte de prazer, felicidade e segurança. Hoje queremos que o nosso parceiro nos proporcione aquilo que antigamente quando vivíamos em comunidades, toda uma aldeia nos proporcionava. Queremos que ele seja não só o nosso melhor amigo, como o mais fiel confidente, o nosso parceiro intelectual, um amante apaixonado, um excelente pai/mãe, tudo ao mesmo tempo. E que fardo pesado isso é para o outro!.. 

Quando deixámos de viver em comunidades e nos mudámos para as cidades, passámos a ser muito mais livres mas ao mesmo tempo muito mais sós. E hoje tentamos estabelecer com uma só pessoa os laços de proximidade que tínhamos com muitas outras e que inevitavelmente perdemos.

Desenho Recortado de Rob Ryan

Por fim há que "mantermo-nos interessantes para nós próprios", o que implica cultivar os nossos próprios interesses e relações com outras pessoas  para além do parceiro (amigos, família, etc..) e conseguirmos realizarmo-nos e sermos felizes também sozinhos, pois isso é a base de uma relação saudável. 

Como diz Scott Peck: "uma boa relação só pode existir entre duas pessoas fortes e independentes." O amor é um exercício de escolha livre. Duas pessoas podem dizer que se amam apenas quando são capazes de viver uma sem a outra, mas escolhem viver juntas".

Poderia continuar, mas este post já vai longo, pelo que certamente irei regressar de novo a estes temas por aqui. Espero que tenham gostado de o ler tanto quanto eu gostei de o escrever. Que tenha sido de alguma forma útil ou que, pelo menos, nos permita pensar um pouco sobre estas questões tão complexas como fascinantes.

Boa semana a todos*

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